quinta-feira, 10 de março de 2011

Meu Mundo Interior

Os olhos, os olhos. São órgãos tão especiais que o cérebro dedica muito de suas funções, só para eles. Não à toa, dizem que mostram aquilo que as pessoas têm na alma. Mas poderia dizer que algo oposto ocorre, quando cada pessoa vê o mundo de forma bem particular e algumas vezes, não no sentido metafórico...

Conta-se que há pessoas que vêem o mundo em preto-e-branco; outras distorcido, em maior ou menor grau. O que você vê? Você pode provar que o que vê é realmente o que vê ou seria apenas tudo o reflexo da luz que habita o mundo? Então, como seria para confiar naquilo que vê, se a visão, órgão tão facilmente enganado por luzes e cores, distraindo sua percepção do que pode chamar de real e daquilo que são apenas traições de sua memória?

Pior ainda: como seria se pudesse ver através dos olhos de outra pessoa? Se pudesse ver o mundo como ela vê - em todos os sentidos - seria que isto não mudaria sua própria visão de como encara o mundo? Faria-lhe ver o mundo como é de verdade, ou a distorções dela entrariam em choque com as suas, causando uma torção ainda maior?

O experimento está para começar. Puxe uma cadeira e assista ao show sem preconceitos. E tente abrir os seus olhos para ver o que realmente está por vir, porque, saber por que uma pessoa age, não explica o porquê de suas ações.

>>> Não é possível abandonar o caminho porque sempre esteve nele <<<
O Tao.


Para quem está a caminhar na estrada da vida, facilmente se aperceberá que ela é proporcionalmente longa à curva das mal traçadas linhas que guardamos à mão. Algo como uma escrita rudimentar dos deuses, a recitar o código genético de nosso destino, que está sempre a mudar, conforme o tempo vai passando. Mas não possível discernir se realmente e capaz de mudar ou se fica mais clara sua interpretação.

“De escolha própria escolheu a solidão”, vem à mente do rapaz como o trecho de uma música. Já havia tempo que decidira ser uma alma solitária numa trilha pouco comum. Ainda assim, sentia falta de ter alguém para compartilhar a dor de seus pesares e os sabores de suas vitórias. Até saber quão estava adiantado estava o seu caminho, se convertia num difícil feito, sem ter alguém como referencial.

Perdido num mundo só seu, mesmo quando acompanhado, o jovem procurava sempre recordar os velhos dias que não voltam mais. Seu tempo de criança a brincar despreocupadamente e os carinhos da mãe que nunca conheceu. São dele os olhos que nos permitirão ver o mundo com outros olhos. Prestem muita atenção à forma como ele vê e reage ao mundo, pois será crucial em nossa viagem.

Este rapaz vivia quase sempre com lágrimas aos olhos e um profundo pesar. Sentia uma imensa dificuldade de atravessar o abismo que o separava do resto da humanidade. Quando perguntado, nas raras ocasiões que encontrava companhia de viagem, o porquê de estar a chorar, dava o silêncio como única resposta. Não é que não desejasse falar, ou que desconfiasse da companhia de viagem, mas é como se lhe faltasse energia para isso. Os pensamentos eram formados vezes e vezes, sem, no entanto, jamais partir do plano das ideias.

Ele estava bastante cansado, pois havia caminhado a madrugada toda. Não é como se estivesse muito frio para encontrar o sono ao relento sem riscos, mas ele preferia se manter aquecido com o pequeno exercício de andar que fazia. Assim, andava distraidamente pela rua, pela margem da rua, bem devagar. Sua bagagem consistia apenas numas poucas mudas de roupa, todo o dinheiro que conseguira arranjar e alguns itens pessoais.

Olhou para o céu e notou estranhos padrões digitais nas nuvens... Pensou logo que iria chover. Ergueu a palma da mão para o alto, num gesto ao mesmo tempo contemplativo e mundano, em busca de uma gota de chuva e da resposta para as suas preces. Podia sentir o prenúncio de um presságio; há muito tempo esperava por um. Aguardava pacientemente por este algo caprichoso destino, que fizesse sua vida dar uma guinada de cento e oitenta graus, e o libertasse do círculo vicioso da repetição opressiva.

Foi então que seu desejo se realizou. Mas de uma forma diferente daquilo que havia idealizado. Perdido em suas próprias elucubrações, não conseguiu notar os avisos sonoros da ameaça motorizada que estava às suas costas. A Força reguladora universal escreveu no seu livro da vida este grande evento que com muita fé pedira. Mas, mesmo acontecendo tão rápido, nem parecera que se passara apenas alguns segundos, mas uma eternidade inteira.
>>> Estava para ser atropelado <<<

Tudo ficou claro de repente, como na escuridão num negativo de fotografia. Podia ver o veículo bem em cima de si, com o seu motorista em pânico. Via também muitas linhas. Linhas no chão, linhas na estrada, linhas no céu, linhas nas nuvens e até sobre si. Linhas, todas elas muito brancas, cujas espessuras variavam de décimos de milímetros até a largura da palma de sua mão. E linhas fortes, espessas, como se fossem tentáculos, saindo de seus pés, conectadas ao veículo, como a deter ou a atrair a colisão fatal.

Não é possível afirmar com certeza se o garoto fora repelido pelas linhas ou arremessado pelo choque residual com o veículo. De qualquer maneira, machucado ou não, caiu inconsciente.

Seu desejo fora realizado:

“Estou acordado, mas queria poder voltar a dormir” e caiu numa espécie de coma. Nos instantes finais podia até mesmo escutar a voz de um gênio, bem ao seu ouvido a dizer baixinho:

“Maktub” - Que assim seja.

***
Crime e castigo. Culpa e arrependimento. Dois pares de coisas tão vividos no imaginário coletivo humano. Sentimentos que sempre vêm à tona na mente daqueles que transgridem a própria fé em que acreditam. Extremamente autoindulgentes, se julgam indignos de qualquer merecimento ou perdão. Desgraçados e maculados, devem se sujeitar de bom grado a caminhar além dos portões do inferno do erro que cometeram.

Contudo, dentre estas almas tão singulares, um estranho efeito paradoxal ocorre, talvez para nos mostrar o quanto irônico ou justo o universo pode operar as suas tramas que tece tão bem. Então, para aqueles que permanecem fieis aos seus ideais e trilham um caminho de retidão, mesmo nas trevas, lhes são dados uma Segunda Chance para redimi-los.

Esta ajuda normalmente surgirá sob a forma da chegada de um ser ainda não tocado pelas impurezas e chagas de seus pecados, podendo assim, trazer a luz e a expiação para os crimes para quem não pode perdoar a si mesmo... Oh sim...

>>> Domine, actum meun perdona <<<

Observemos agora outro de nossos companheiros de viagem. Ele é bastante conhecido na sua comunidade. Responde pela alcunha de doutor Eliezer e acabara de cometer uma falta muito grave.

Logo ele, que era um médico de grande renome na cidade. Casado já há quinze anos e pais de dois belos filhos. Possuía uma casa de bom tamanho à cerca de 25 minutos do centro, num bairro calmo e tranquilo. E alem de ser o médico-chefe da residência do hospital que trabalhava, era membro do conselho diretor da instituição.

Em suma, uma posição de grande respeito, prestígio e grande responsabilidade para quem tanto se dedicou na nobre tarefa de salvar vidas. Sua própria postura no ambiente de trabalho deixava seus subordinados e colegas de trabalho com tanto desempenho e vigor, mesmo diante dos desafios que um hospital de grande porte costuma passar, dada a demanda de pacientes.

Sua política, por sinal, considerava que ser médico era especialmente direcionar todas as suas forças para o operacional. Administrar, somente crises, nunca papelada, era o que sempre dizia. A papelada que ficasse com outro com menores pretensões e gosto por burocracia.

Que diferença fazia, por conseguinte, a semana excruciante por qual estava passando? Deveria fazer diferença o número de pacientes superior ao habitual? Pânico e histeria generalizada por medos das novas pandemias que se espalham velozmente pelos jornais? Todo seu empenho e vigor não deveriam lhe deixar preparado para todas as crises que aparecessem?

Mas não... Quando a verdadeira crise chegou não estava preparado. Vivia, em verdade há muito, apagando pequenos focos de incêndios administrativos. Quando a crise in factum chegou, não soube o que fazer. Como organizar seus comandados. Trabalhou sem parar mais de um dia, muitas horas além de seu plantão.

Estava exausto, mas, lentamente dominava a demanda. Não é dever, forçar o corpo, a mente e o espírito para ter a satisfação do dever cumprido? Era isso sempre o que pensava. Mesmo ele, porém, tem limites e não poderia suportar o esforço empregado de forma natural.

É justificável, portanto, roubar remédio de um paciente, o qual precisava desesperadamente dele para aplacar a própria dor, e de outro para manter-se acordado? Tudo isso porque não sabia parar? Tudo isso porque queria as glórias de cada paciente salvo para seu nome? Orgulho e autopromoção são motivos válidos para ir tão longe, pior ainda, num caso de alta complexidade o qual a decisão errada arrisque a vida do paciente?

E os desejos conflitantes de curar o paciente, de ir embora, do efeito das drogas, de ter sucesso e desejar descansar após um dia terrível, de não ser derrotado por uma mera doença desconhecida? O que acontece quando se perde uma batalha assim?

Há perdão para alguém assim?

Então voltamos para as encruzilhadas do destino, onde o Dr. Eliezer acabara de atropelar um rapaz que caminhava distraído pela rua, enquanto se dirigia novamente para o trabalho. O rapaz parecia ter surgido do nada na estrada escura do dia nublado que sequer completamente iniciara.

Seus nervos, em frangalhos, desabaram. Desesperado, ligou em prantos, para a mulher, pedindo que o encontrasse no local do acidente. Mal terminou a ligação e o aparelho chamou novamente e avisaram que acabara de perder o paciente. Um jovem da mesma idade do que há pouco atropelara.

Embora machucado, estava vivo. Eliezer o abraçou, consternado. Subitamente lhe ocorreu que a esperança para se redimir estava bem ali. Silenciosamente rezou para que desse tudo certo, enquanto aguardava seu cônjuge chegar. E ele sempre sabia o que fazer quando ela estava por perto.

***

Há momentos em que é preciso abandonar a solidão para caminhar pelas trevas em conjunto. Todos nós temos erros a reparar, sonhos a realizar e o desejo de mudar a própria história. Dividindo as amarguras e sofrimentos, aqueles que se vêem perdidos frequentemente encontram esperança de redenção ao ajudar os que cometeram crimes que não foram como os seus.

E então, como pequenos asteroides que são, são arrancados de suas vidas por forças que sequer ousam suspeitar. Capturados assim pelo poder de atração da vontade destes corpos maiores, não têm os asteroides alternativa, senão orbitar em torno destas possantes massas de culpa, vergonha e ressentimento, devendo resolver a questão fundamental da física do destino que o atraiu, ou ainda aguardar ser invocado por um corpo celeste ainda maior.

Então, enquanto nosso observador nada observa que seja de nosso interesse, a Sra. Helena chega. A Senhora Helena. Matrona, firme e iluminando a manhã insone com seus cachos dourados, escondendo seus olhos de ver atrás de lentes escuras. Somente bastou sua presença irradiar do veículo, quando saiu e seu marido parou.

Ele estava terminando de fazer os curativos no garoto e satisfez sua vontade ao saber que a presença dela ali o inspiraria a fazer tudo o que era preciso. Ela poderia, se quisesse ou se fosse pedido, fazer muito mais pelo nosso bom doutor. Mas apenas a presença já lhe era o suficiente para aplacar a dor e o espírito.

Para quem chegou tão rápido, a Sra. Helena estava elegante o suficiente para ir numa reunião de pais e mestres. Ou ainda, se apresentar em qualquer evento formal que desejasse com seu marido. Mas, ignorando estes detalhes, o Dr. Eliezer pegou o rapaz nos braços e o entregou a ela. Ele estaria sob os cuidados dela a partir de agora.

Explicou que ainda precisava ir ao hospital resolver algumas pendências do último problema que havia tido com o paciente que falecera - e parece óbvio que o nosso preocupado doutor iria buscar se certificar que não havia deixado rastros de suas indiscrições à solta ali.

Num tom tentando parecer firme, ainda com os olhos vermelhos da falta de sono e das lágrimas derramadas, disse-lhe do imperativo de manter a saúde e bem estar do rapaz até ele voltar. Que não deveria deixá-lo partir, sob nenhuma hipótese, tornando-o um hóspede, voluntário ou não, por tempo indeterminado.

Havia muita coisa em jogo, na visão do nosso bom doutor. Que ameaçasse até os filhos de morte, caso tentassem estragar tudo. Por fim, tendo terminado sua lista de tarefas para a Sra. Helena, enxugou as lágrimas e retirou os óculos escuros da esposa, reassumindo sua postura sisuda habitual. Renascido, voltou ao carro e dirigiu-se para o hospital.

A Sra. Helena não gostou nada daquele ato todo. Teatral demais, um tom de escárnio e tirânico; uma tirania escarnecente! Mas a tudo isso a Sra. Helena podia suportar. Parecia um muro inexpugnável diante cada palavra em tom de asneira que o ego ferido seu marido dizia. Mas quando ele tirou as lentes que lhe protegiam, tudo mudou. Ela não gostava nada de ser exposta assim, tão de repente. E ainda que não tivesse lhe dito nada, nem feito nada em resposta ao ato dele, era uma leoa ferida e parecia furiosa.

Ela olhou para o jovem e suspirou. Foi para o carro dela e acomodou ele cuidadosamente nos assentos traseiros e refez o caminho de casa, escondendo seus pensamentos com outro par de lentes escuras que havia guardado no veículo. O dia clamava para iniciar, mas o clima discordava, como na previsão do jovem mais cedo.

 
Uma amostra tácita que o tempo estava decididamente estranho aquela manhã. Vinda como se fosse do nada, poderosas gotas de chuva, afiadas como navalhas, exigiam seu saque de sangue ritual, dando a certeza que os gênios que habitam as tempestades anunciando que um novo ciclo iniciava e que era direito assistido a eles receber as libações e sacrifícios para os milagres que estavam a operar.

Hesitante, a Sra. Eliezer estacionou a porta da garagem, desembaçando o vidro, olhando para o alto. Mas como saber o que se passava em sua mente? Teria compreendido a mensagem? Não importa, entretanto, perder tempo em muitas elucubrações, pois, tão abruptamente quanto chegaram os gênios, eles foram embora, deixando o céu azul-nascente e a terra marcada com sua mensagem e sementes de vida nova.


>>> Se quer mudar o mundo, dê três voltas dentro de casa <<<
Provérbio chinês.

A Sra. Helena levou-o para cima, carregando-o em seus braços. Sem pensar duas vezes, acomodou-o em seu leito, onde havia muito espaço. Olhando para o relógio ao sentar na penteadeira, percebeu que ainda era muito cedo, mesmo após toda esta aventura. Resolveu trocar de roupa, pondo novamente a camisola e escovou os cabelos até aproximar o horário dos filhos se levantarem.

Quando este momento chegou, sentou na beirada da cama, e pôs-se a acariciar os cabelos do jovem adormecido, com um sorriso nos lábios idêntico ao de uma mãe enquanto amamenta uma criança. Podia ver que ele era um bom garoto, mas havia tanta dor em seu coração... tanto sofrimento...

Foi então que a sua filha mais velha, Júlia, entrou no quarto. Todas as manhãs, os filhos de Eliezer e Helena procuravam os pais, tomados por um habitual estupor matutino, para receber o beijo de bom-dia que iria despertá-los de todo. Júlia estava desorientada e confusa, como todas as manhãs quando chegava ao aposento, mas ainda não estava cega! Podia ver claramente o intruso com sua genitora, roubando o que era seu por direito.

E mesmo no estado deplorável em que se encontrava, seu coração se encheu de fúria e a jovem se aproximou para dar uma lição que jamais esqueceria. No meio do caminho, já de armas em punho, Júlia parou derrotada, tão somente com o olhar singelo da mãe, que a chamou com um leve aceno, desarmando todas as intenções rudes da filha e aproximando-a de si, onde pode cumprir o ritual diário, oferecendo-lhe um ósculo à fronte e ia assim, lhe despertar.

Caindo em si, Júlia examinou todo o contexto das coisas e olhou direito quem estava perto de si. Seu súbito ódio, havia tornado-se interesse e a adolescente queria saber mais do rapaz à sua frente. E como havia pouco tempo para o desjejum, desejou a ele o bom-dia da maneira que conhecia, já que não saberia se estaria presente para fazê-lo quando ele se levantasse e desceu correndo as escadas.

À mesa encontrou o irmão, Augusto. Ele tomava café completamente ausente. Para a irmã, tinha a expressão abobalhada e lembrava um zumbi. Há algum tempo ele decidira abandonar o ritual diário matutino da família. Para Júlia, era esta a explicação do estranho comportamento do irmão. Mas não queria pensar nisso agora. Tudo o que queria pensar era que a manhã passasse bem depressa para que pudesse voltar da escola e conhecer seu novo e futuro amigo.

Estava ansiosa e o seu coração batia descompassadamente aguardando por isto.

***
 
“Mamãe, socorro! Não me deixe ficar aqui, sozinho neste lugar feio e escuro. Aparece para mim que quero te conhecer, lhe abraçar e sugar em seu seio, curar esta sede insaciável de carinho por ti! Segura minha mão bem forte e me tira daqui, que já não consigo mais me mover, não consigo mais te ouvir!”
“Socorro”
...
‘Não te preocupes, meu filho, que ainda não é esta a hora que dormirá o longo sono. Velarei o teu dormir até que a hora do teu novo despertar aconteça’.

Um local totalmente escuro, ao pé de uma escadaria, onde apenas ela e o que queria esconder estavam invisíveis. Acima dela, após um curto serpentear estava uma sombra zombeteira, gargalhando num altar que mais parecia um trono de ossos.

Vultos sinistros atormentavam nosso herói, cuja mera presença evocavam medo e lembranças ruins. Desafiando o próprio medo e sentimentos ruins que tentavam tomar contar de seu ser, ele subiu a escadaria, ficando cara a cara com a sombra. Ele não sabia se devia sentir medo ou ódio dela.

E ela ria, porque sabia que ele sabia que qualquer dos dois era a resposta errada. Tenso e indeciso ele ergueu o punho e concentrou seu ser no ataque que iria fazer, golpeando-a e perfurando-a no ventre com as mãos nuas!
E ela gargalhava desesperada, quase engasgando de tanto rir!

“Você errou o alvo! Errou o alvo!! Como pode errar um alvo tão fácil? Simmm?”

Seu riso sinistro se torna assustador quando ela cresce e se mescla com as trevas reinantes, numa forma fantasmagórica e bruxuleante. No seu lugar, uma luz vermelha e fúnebre ilumina lentamente a caverna que se encontrava, onde ele pode ver a pessoa que acabara de matar. Ele nunca vira alguém assim antes. Uma garota jovem de cabelos castanhos claros, mas sabia disso ser um sinal. Era como as chamas que se erguiam ao redor no ambiente, lhe lembrando de emoções e atos dos quais não queria se arrepender, mas sabia que eram errados.

Seu corpo arde e treme, junto com a caverna, quando um acesso de dor toma o seu corpo. Sua mão suja de sangue lhe incomoda e ele queria enxugar o suor de sua testa. Estes e outros sentimentos afloram em seu ser confuso, sem entender direito o que estava acontecendo. Ele não mais estaria nesse mundo e sabia disso.

>>> Não combata demônios temendo se tornar um <<<
Fredrich Nietzsche.

O tempo é, com efeito, uma constante particular demais para poder ser definida a contento. Apesar disto, ele mesmo escolhe o período necessário para a gestação ou maturação das coisas, discriminando o momento ideal de todas elas eclodirem e alcançarem o seu propósito - seja ele qual for. Tudo começa e tudo tem um fim. E tudo tem a hora exata para acontecer.

É por não saber o ínterim desses planos secretos do divino que a maioria das pessoas aflige suas vidas, questionando a falibilidade do fragmentar do grande quebra-cabeças universal, quando, nem ao menos entendem como ele se processa. Vivem chorando e se questionando quando as coisas e eventos não acontecem quando e como deejam, sempre sem ver as pistas que estão a receber.

Só é preciso abrir os olhos...

“Ele está abrindo os olhos, mamãe!”
‘Eu disse para não incomodá-lo enquanto dorme.’
“Não estou incomodando-o. Estou velando por ele, como você fazia.”
“Nnnnnnnnnnn”
‘Está melhor? Você foi atropelado por meu marido, então acabei trazendo-o para cá, para cuidar de seus ferimentos. Você...’
“Dormiu por um dia e meio” – risos.
‘Está se sentindo melhor?’
“Sim”
‘Eu sou Helena.’
“Oi, eu sou a Júlia. Você veio de onde? Tem irmãos? Tem namorada? Ei, você tem cara de Thomas. Posso lhe chamar de Thomas?”
“Pode”
“Maravilha. Thomas, você quer café ou algo especial? Nós achamos uma mochila com você, mas a mamãe não deixou a gente mexer nela.”
‘Thomas, é? Melhor se lavar e descer para fazer uma refeição. Afinal não se alimenta desde ontem.’
“Você vai tomar banho primeiro não é? Porque aqui em casa ninguém come fedendo. Não que você esteja fedendo, mas que é que não toma banho desde ontem, então a mamãe tem medo de seu cheiro incomodar o papai na mesa. Mas nem sempre o papai está em casa para o jantar, então não deveria ser problema. Mas hoje ele estará em casa, então é melhor tomar banho com certeza. Você tem toalha ou quer que eu lhe empreste uma?”
“Eu tenho a minha”
“Nhaaaaaa....”

Seus olhos esquadrinhavam tudo neste novo ambiente. Podia ver Júlia abraçando as pernas, enquanto se apertava em si mesma na cama, onde o observava. A mãe, estava escovando os cabelos, mas havia parada e agora estava de perfil para ele. Além delas duas estava uma outra figura a observá-lo: Augusto, o irmão da garota, usando um boné ao contrário mesmo dentro do quarto, com suas roupas esgarçadas e misturando tanto desleixo quanto moda de alguma tribo urbana em particular.

E linhas. Tantas linhas circulando em envolvendo o quarto que mais pareciam ao Thomas que a casa fora tomada de teias de aranha. E isso não era tudo que ele via. Estava assustado com tantas novidades de uma só vez, que pegou a toalha e correu para o banheiro para parar de ver o que via.

Um banho quente. Já tinha esquecido o prazer que sentia ao estar em um. Sentia seu espírito lavado de todos os pesares que tinha. Mas ainda se lembrava da risada zombeteira de antes e isso lhe preocupava muito.

A neblina do banho aumentou na tentativa de apaziguar o seu espírito e só dissolve quando seu ponto de vista muda para um novo âmbito completamente novo e particular - até mesmo para ele que podia ver tudo tão bem. Estava à mesa com os Eliezers, a família completa. Até o bom doutor estava a mesa.

O mais estranho para o Thomas é que sentia que via toda a cena desse jantar como se estivesse fora de si mesmo, observando através de olhos que não eram os seus. Seriam os nossos? Como deve ser a sensação de ver seu braço se erguer e trazer comida à boca e não parecer que está em si mesmo? Um hóspede de si mesmo?

E o que dizer da dinâmica social da família Eliezer à mesa? Um silêncio incrível, tão mórbido e perturbador, os quais Thomas não ousa interromper, mas só observar cada um atentamente. Mas sentia que não estavam silenciosos, nem no seu espírito, nem entre si. Podia captar uma estranha rede em funcionamento.

Desistiu logo de tentar olhar a Sra. Helena. Nunca conseguia ver os seus olhos, pois sempre que a encarava, ela estava com eles fechados, voltados para o prato ou olhando em outra direção. Mas sentia a força da presença que ela irradiava, mesmo que contida, de alguma forma que não conseguia definir.

Augusto tinha um olhar esquisito e distante. Parecia achar o convidado à coisa mais engraçada do mundo. De todos, ele parecia o mais obviamente estranho. Mas Júlia e o pai pareciam discursar e debater com inúmeras posturas e trocas de olhares. Isso surpreendeu o visitante, que nunca havia visto uma forma de comunicação assim. E numa observação direta a visita, como se percebessem estar sendo ouvidos nesta ‘conversa’, ela termina com o Sr. Eliezer se erguendo e Júlia se curvando a ele submissa.

Toda essa aura nova era completamente estranha ao rapaz, que passou do jantar a um novo flash, na sala, onde os pais dos jovens davam recomendações e orientações de como se portar já que iriam os dois pais se ausentar até tarde da noite. “Deitem às dez”, ouviu o pai dizer claramente aos dois. E viu as palavras saírem de seus lábios e marcarem os filhos, impregnando o ser deles com elas.

Ele viu o que ninguém mais podia ver.

Júlia corre para o sofá e se deita nele, balançando as pernas, enquanto liga para alguém. Ela parecia animada, mesmo assim. Thomas podia ler a frase esculpida na testa dela e na do irmão. Em pavor, ele os observou de perto e não entendia o que via, mas sabia que devia ser por isso que acontecia o que acontecia.

Havia fios prendendo o rosto de Júlia, esticando e repuxando, forçando a sorrir, a manter os olhos bem abertos. A esculpir os seus cabelos e também provavelmente o seu cérebro, de outra forma, que não tinha escolha exceto a viver assim. O seu irmão, não parecia melhor. Mas os fios pareciam torcidos, mal amarrados e queimados em vários lugares, como se o rapaz houvesse tentado se livrar deles, mas a consequência resultante da tentativa não tenha sido positiva.

“Alô Diego? Sim, não podemos sair. Ele disse que tínhamos de ficar em casa, nada de bagunça e que temos porque temos de dormir às dez. Você sabe por quê. Ah, e o Augusto disse que está querendo mais. Tá tchau, estamos esperando. Ah, tem alguém que eu quero que você conheça, ele é super-duper-legal!”
“Diego?”
“É um amigo nosso, Thomas. Ei, por que está passando a mão na minha testa? Como assim, tem algo escrito nela? Não vejo nada no espelho. Conversando com os olhos? Imagina, de onde tirou essa idéia?”
Olhos para o alto e para a esquerda. Ela estava mentindo e Thomas sabia disso. Mas não sabia sinceramente sobre as outras coisas que o rapaz falava. Nosso herói não teve tempo de continuar a explicação, pois a campanhia havia tocado, despertando Augusto de seu habitual torpor, manifestando uma alegria suja e prazer em seus olhos. Era espantoso vê-lo vivo, porém.

Júlia aproveitou também a deixa, para se esquivar de novas questões difíceis, enquanto recebia as visitas. Um grupo grande. Pareciam ter dez pessoas. Pessoas rudes, de estilo rústico. A presença que emanavam variavam, mas não eram nenhum deles, do mesmo estilo que Júlia, pensou Thomas.

“Diego: Thomas; Thomas, Diego.” Júlia apresentou o estranho. Rosto limpo, corpo forte e Thomas tinha de olhar para cima para encará-lo. Ele tinha uma presença forte e era claro que era o líder do grupo. Mas não foi só isso que passou pela visão periférica do hóspede da família Eliezer.

Uma troca suspeita, “Não me divirto faz uma semana”, diz Augusto ao negociante perto dele. Olham para os lados, paranóicos, trocam pequenos objetos e cada lado sai feliz para o seu lado, revelando um prazer proibido manifesto. O aperto de mão forte de Diego obriga-o a manter sua atenção focada nele.

‘Thomas, é? Posso lhe chamar de Tom?’
“Não”
‘Isso será divertido.’

***

Você já sentiu antipatia à primeira vista? Algo misterioso do universo, onde seja a aura, intuição ou outro motivo que nos leva a detestar alguém que acabou de conhecer, antes mesmo saber coisa alguma sobre ela tão somente ao vê-la.

Seria esta pessoa algo que você vê em si mesmo de ruim e por isso mesmo a odeia? Ou inveja, por ela ter qualidades que deseja, mas sabe que no fundo jamais poderá adquirir? Ou ainda uma intuição ou choque de auras que causa o lidar com esta pessoa algo extremamente inexplicavelmente indesejável.

Não importa a teoria. O fato é que Thomas não gostou da presença de Diego tão logo o viu. Algo nele o incomodava profundamente e, isolando-se do mundo, os dois exibiam os espíritos em conflito, provocando o deslocamento do ar, girando ao redor dos dois e erguendo leve poeira, apenas com a força de seus olhares intensos em disputa.

A pressão aumenta e Thomas coloca um pé à frente. Seu adversário é maior e mais forte. Então, Diego abre os braços e começa a aplaudir, quebrando a tensão e elogiando a presença marcante que estava à sua frente.

‘Sabe, rapaz, eu gostei de você. A Júlia estava certa. Você parece legal’ – cumprimento.
“...” – recusa cumprimento.
‘Ah, quié isso? Hoje à noite nós vamos fazer uma experiência muito legal. Eu não estava certo se você iria conseguir nos acompanhar, mas agora tenho certeza.’
“Pensei que ninguém podia sair de casa”
‘E não podemos, Thomas. Mas o Diego tem um jeito para permitir que a gente consiga ir num lugar muito legal, sem desobedecer o papai.’

Diego se aproxima de Thomas, apontando o indicador à direção da testa do jovem hóspede. Thomas vê neste dedo algo como um olho. Só que não é como as coisas que costuma ver. Parece de fato haver desenhado um olho no dedo e algo refletindo a luz quando ele se move.

Quando ele toca a testa, algo se gruda nele e Thomas solta um grito surdo quando sente algo arder e como se sua testa chorasse. Imediatamente, sua vista fica turva. Parece que o ar tem gosto e sente odores engraçados. Ele tenta fazer suas mãos alcançarem este 3º olho que dói e lacrimeja, mas é como se suas mãos ficassem muito compridas e pesadas, levando todo o tempo do mundo para chegar lá. O que era isso, perguntou, mas sua voz saiu entrecortada, como se seus lábios não estivessem com vontade de falar.

E Diego aponta os dedos para os olhos de Júlia. Ao vê-los, ela se curva para trás, como uma marionete largada pelo seu titeriteiro. Então com novo movimento, ela revive a começa uma dança em volta de Thomas. Diego se agiganta pouco a pouco se tornando ainda mais forte e ameaçador, rindo enquanto dezenas de Júlias dançam de forma sedutora e sensual.

O corpo do rapaz ascende às estrelas. Lá ele encontra uma criatura feita de matéria escura. Dela se erguem chamas rubras que pouco fazem para remover a penumbra. O coração de Thomas acelera. É ele!

“Já se esqueceu de quem é? Você é um demônio. Vai matá-los também?”

Algo estala no coração dele. Um grito de dor e angústia. E ódio. Um ódio tão grande que ele deseja aniquilar aquela existência e a si mesmo. Não! Deseja, do fundo do coração, num ímpeto, aniquilar toda a existência! E com um poderoso soco no seu reflexo, toda a realidade estilhaça!



>>> Eu miserável! Para que lado devo voar | Infinito ódio e infinito desespero? <<<
John Milton, Paraíso Perdido.

‘Não se mexa, Thomas. Calma, senão não consigo fazer o curativo.’
“... Júlia?”
‘Devia tomar mais cuidado ao viajar. Acabou esmurrando o espelho.’
“JÚLIA!!!”

O ambiente mudou e retornou à casa. Ela fala a verdade. Há cacos de vidro pelo chão e a destra dói, recebendo as ataduras. Mas o choque real foi ver que a roupa da garota havia desaparecido, tendo suas vergonhas, cobertas apenas pelas linhas! Pelas linhas! Linhas rondando e vestindo as pessoas na casa, diferentes das de antes, não naturais e originais da casa.

Destes, novos fios, todos convergiam para as mãos de um enorme Diego que ria diabolicamente.

‘Agora, garoto, é a sua vez!’

***

Escarpa de carpos. Carpas empurram em puxam o yin e yang. Pés na cabeça. 3,14 olhos. Dores sonoras. Lidocaína. Nada faz sentido, nada faz sentido! Setentrional. Eu sei que sei! Disparate.

O princípio do fim é só o início.
O fim do princípio é só o recomeço, oh Destino.
Para chegar ao seu jardim é preciso perder-se.

Diego estica os braços e prende Thomas. Com uma das mãos o maxilar e com a outra cobre seus olhos, usando a força de seu corpo para virá-lo lentamente para o oeste. Ele sequer deveria alcançá-lo, mas alcançou. O rapaz tenta se libertar, mas o monstro é grande e forte demais. A pior parte começa, com linhas envolvendo o pescoço de Thomas.

Ele tenta puxá-las, impedi-las de sufocá-lo, mas em vão. São finas demais e as tentativas de detê-las, tiram seu sangue da traquéia e seus dedos. O nervoso toma conta de seu ser e Thomas tenta domar sua vontade inquieta, para que obedeça-o e manifeste seu desejo. Mas está ele agora descontrolado e confuso, com seus todos sentidos desregulados, sem que possa processar normalmente.

‘Não se mexa. É para seu próprio bem. Preciso mudar sua direção!’
“Ghaaak”

Entre a tosse e força da pressão da chave e o sufocamento determinado pelas cordas, Thomas sente que vai apagar. Sua consciência nubla mais e mais. Nunca pensou que teria seu fim assim, mas achou por um segundo que talvez fosse merecido, mesmo que não desejasse a própria morte.
Então tudo fica escuro por um segundo e algo estranho acontece. As sensações ruins, as cordas lhe apertando, as mãos poderosas restringindo seus movimentos cessa e uma sensação de bem estar toma o seu ser como se fosse pleno de harmonia.

Diego não é um gigante e Júlia está à sua frente, ambos com roupas casuais, nesta tarde ensolarada da pradaria onde se encontram. Não há mais fios e todos parecem diferentes, bem como o lugar onde estão.

Diego agora tem olheiras profundas e um visual mais adulto, com barba por fazer, ainda que tente parecer jovial, expressa no seu ser a potência do líder. Júlia, com sua roupa praiana, ainda tem motivos de elos e grilhões, ainda que de tecido, ocultando o biquíni ou maiô que deve portar para se banhar. A felicidade dela, liberta, é reconfortante, ainda que uma sobrancelha se torça de maneira estranha de quando em quando.

As demais pessoas estão ao longe num lago ou rio, Thomas não tem certeza e pode deduzir que os reconhece pela suas auras, muito embora seus corpos estejam longe demais para ter certeza.

Thomas está estupefato.

Mas seus companheiros também estão e regojizam.

“Que lugar é esse?”
“Eu disse que ele conseguiria de primeira!”
‘Você disse mesmo, Júlia’
“Eu não entendo”
‘Você abriu a sua mente e veio para o Mundo à Parte. Eu não tinha certeza se iria conseguir trazê-lo para cá logo na primeira vez. Mesmo estando presos em nosso mundo habitual, podemos, ao nos livrar dos grilhões, conseguir alcançar aquilo que procuramos no fundo do coração.’
“...”
“Ele não está entendendo nada, Diego. Vamos mostrar o lugar para ele! É a primeira vez dele aqui e nem temos tanto tempo assim para passar aqui.”
‘Muito bem, senhorita. Pode falar, se acha que se expressa melhor que eu.’
A garota toma Thomas pelo braço e o puxa descendo o declive que leva ao lago.
Criaturas silfídicas passam por eles navegando pela brisa.
“Thomas, aqui é onde podemos ser livres. Podemos ser quem nós quisermos.”
“Percebo”
‘Vê as garotas voando? Foi porque elas quiseram ser assim hoje.’
“Diego, você disse que ia deixar eu falar.”
‘Desculpe.’
“Mas está certo. Podemos ser completamente diferentes por fora, mas ainda iguais por dentro, porque, nesse mundo, somos aquilo que nossos corações são!”
“Mas nós ainda somos nós mesmos”
“Sim, mas porque assim escolhemos.”
‘Mas no seu caso, Thomas, é diferente.’
“Sim.” - ela faz cara encabulada.
“...?”
‘É porque é a sua primeira vez. Eu tive que moldar sua mente para trazê-lo até aqui. Não tinha certeza se você teria força de vontade e coesão para se manter inteiro, neste mundo de sensações. Elas são muito fortes e somos facilmente levados por elas. Deve ter percebido como foi quando usei o vetor de ativação.’
“Vetor de ativação? Fala daquela coisa que pôs em mim”
‘Sim. Como era sua primeira vez, não conseguiria vir naturalmente. Então tive de usar um meio alternativo. Pensei que precisaria de mais algumas tentativas com esse método para conseguir poder vir naturalmente, mas vendo como ficou, pode vir aqui tranqüilo, sem dificuldades. Só precisa de um gatilho.’
“Porque está encabulada, Júlia?”
“Porque na nossa primeira vez somos como realmente somos. É normal ter vergonha de se expor em mostrar quem você é para nós. Eu fugi e não quis que ninguém me visse. Mas você, você é perfeito. Seu corpo tem esses tons de cores e essas auras que parecem chamas que não queimam. Mas você é muito bonito em seu eu interior. Eu estou muito feliz de ter te conhecido, Thomas!”

Ela se volta para Diego como se não quisesse ou tivesse coragem para encará-lo.

Thomas olha a si mesmo e se admira surpreso como seu eu pessoal era representado neste mundo. Como era algo de valor e respeito, mesmo para Diego, muito embora a dor do pecado repousasse em seu peito.

Isso era um sinal que era bom mentiroso ou que tinha mais em si mesmo de se orgulhar do que se arrepender...? 

A questão pairava em seus pensamentos, quando Diego dispensou-o e disse que podia se divertir, conhecendo o lugar e mais pessoas que ali estavam.

E assim sendo, foi.

>>> Se você vive olhando para o sol, não vê as sombras <<<
Helen Séllen

Thomas sentiu que sua sombra o seguia. Era aquele algo funesto dentro de si, querendo emergir e lhe causando um estranho incômodo. Desta vez ela não parecia zombeteira, mas turva, hirta. Era a isso que Júlia e Diego diziam, pensou Thomas quando sentia seu estômago embrulhar?

Vomitou chamas negras, queimando todo seu interior revolto. Sentia nas entranhas as estranhas sensações múltiplas e confusas voltando. Sua casca e percepção de mundo se tornavam difusas e a distinção de si mesmo tremeu e variou, enquanto sua mente lutava para manter a si mesmo como si conhecia.

Concentrou-se o máximo que pode; em se manter coerente. Em pensamentos bons. Na presença de Júlia. Na flor. O fogo interior. Energia. Si mesmo. Calma. Paz interior. Harmonia.

Numa olhada no horizonte, Thomas admirou novamente o tamanho do lugar em que estava. E seguiu procurando outros ali. Lá estavam os visitantes, todos eles no lago. Ninfas, sátiros e faunos; sirenes aquáticas e demais seres míticos em conluio e em desejo.

Visceralidade Voyeur. Taquicardia. Desejo. Descontrole! Tremor e sudorese. Formas e mais formas, indo e vindo. Rindo e sorrindo. Olham para ele o aguardam. Insuflam e se divertem entre si, na água e na terra. Mostram coisas que conhecia, outras que imaginava e tantas outras que jamais pensara!

A chama se acende. O coração ribomba e tantos sentimentos represados não resistem aos chamados dos sentidos. Imolando a si mesmo em sua sede insaciável, Thomas vai consumindo e sendo consumido pelo seu desejo ardente, retornando ao mundo indistinto da escuridão que tudo originou.

Este É o Mundo das Sensações e este tipo de coisa acontece ali. Estava enganado, não tem preparo para estar aqui, se desfazendo em sentimentos muito mais fortes do que conhece ou consegue dominar. Assim converte em cinzas a si mesmo e sua percepção do mundo para as trevas absolutas.

Agora deve esperar até as estrelas surgirem novamente no firmamento, para que possa renascer como uma fênix e perceber novamente que existe como si mesmo. Então, com o sol se erguendo, vivo novamente, dia após dia, Thomas renasce num vale verdejante.

Thomas está mais calmo. Ainda abalado, mas no controle. Ele se levanta e antes que faça qualquer coisa, outra voz o chama. É outro dos jovens que estava com Diego, embora não saiba o nome dele. ele está no limite da entrada do vale, parecendo que está como guia ou guardião da passagem de uma fenda ou fluxo multicor às suas costas.

‘Thomas.’
“Acho que não lhe conheço ainda”
‘Sou o Cristian. Eu vi que estava com problemas e interferi. Não se preocupe. Acontece com todos os novatos; mesmo os mais talentosos.’
“Eu, eu... eu sei o aconteceu. Mas o que você fez? O que é isso aí atrás?”
‘Não fiz nada demais. Só lhe ajudei a recuperar seus sentidos. Sua consistência espiritual é forte. Só é exagerada e mal direcionada, o que o leva a estes extremos, diante de uma emoção forte. Precisa entender que está acostumado a ter controle do seu ser. Mas isto é feito porque seu corpo ajuda a manter o equilíbrio e aqui está como apartado dele. Então sua mente destreinada é vulnerável.’
“...!”
‘Tudo está ligado. Todas essas religiões, as drogas, sessões de meditação, orações, é tudo a mesma coisa: uma ferramenta para elevar seu estado de consciência para poder sair de si mesmo e ver o mundo como ele é de verdade ou interagir com o universo... conhecer a Deus ou mesmo se tornar um. Este é nosso objetivo, nossa busca em descobrir nosso potencial!’
“Parece auto-ajuda barata. E você ainda não disse o que é essa coisa aí atrás”

Cristian se retira da frente da célula amórfica e com gestos peculiares, como se dobrasse a realidade, torce a luz projetada pela coisa e vai contendo-a e contendo-a, até moldar e formar o irmão de Júlia, Augusto. Mas quando solta-o e se afasta, ele se desfaz novamente.

‘Como eu disse, é tudo a mesma coisa. A luz que cega é a mesma que faz enxergar: Religião, drogas, meditação, oração, seja o que for que você use para aprimorar sua existência, é uma faca de dois gumes. Tanto pode libertá-lo quanto prendê-lo. Isto é o que acontece quando alguém se foca na ferramenta ao invés do objetivo.’

Thomas fecha os olhos. Não pode ver as linhas, mas pode senti-las. E sente uma linha instigante e chamativa, como se estivesse a chamá-lo. Então, sai sem se despedir, com as mãos nos bolsos. Queria dizer alguma coisa, mas simplesmente não consegue.

O vale segue num declive, cada vez mais baixo, contendo animais e vegetação rasteira. Dólmen e outras construções rochosas chamam a atenção, onde um senhor idoso de cabelos e barba branca, olha algo que talvez seja um relógio de sol.

“Você é o primeiro adulto que vejo aqui”

Ele olha rígido para Thomas.

***

Quando Thomas olhou para o senhor que acabara de encontrar não se surpreendeu apenas com a presença do único adulto nesta esfera. Sua outra surpresa era a própria presença que a figura solene emanava. Difícil de descrever tal conjunto mesclado e múltiplo de sensações, mas ele parecia exaltar a força da presença, o sacro; o antigo, primevo ou quintessencial, divino e profano; assustador e animador, digno de respeito e temor.

Quem era este senhor, pensou Thomas, como se não soubesse a resposta à própria pergunta. Enredado pela beleza do céu que descobrira há pouco, não mais enxergava o que era o céu de verdade. Assim sendo, quando tudo parece perdido, e não mais sabemos que caminho tomar na trilha do destino, eis que ele coloca em nossos caminhos quem devemos realmente encontrar para dar o próximo adiante na jornada.

“Você é o primeiro adulto que vejo aqui”

Ele olha rígido para Thomas.

“Talvez porque seja o único capaz de cometer a loucura de ir até um lugar que não pertence apenas para conseguir o que quer”
“A que se refere exatamente?”
“Ora, garoto... só mesmo alguém muito incauto ou extremamente desesperado para cometer um ato assim. Em qual dos dois você se encaixa melhor? Em qual das cartas do tarô você se encaixa melhor? O Tolo ou O Diabo?”

Thomas engole seco. A referência cíclica o perturba e o coloca na defensiva. Seus músculos rangem e se prepara para lutar se necessário.

“Eu não sei do que está falando” - mãos prontas para lutar.
“Ah, sabe sim. Aliais, esse é justamente o seu problema. Comprando indulgências para que seus pecados sejam perdoados”
“Quem é você?”
“Sou o dono das coisas que você cuida, ao qual guardar com zelo e cuidado até eu voltar. Mas traiu minha confiança pensando a si mesmo como dono, já que eu não voltava e se apoderou do que não lhe pertencia. Agora meus agentes vão lhe perseguir sem trégua se continuar a insistir na teimosia”

Desespero. Grito. Diversos vultos saem das rochas cercando o perímetro. Não vão deixá-lo fugir! Precisa fugir ou terá sido tudo em vão! Vá, corra agora que não tem poder para vencê-lo!

“Você não sabe de nada. Muito aconteceu. Desta vez vai ser diferente”
“É o que todos dizem. É o que todos dizem. É tudo ilusão como o mundo em que se vive. E ilusão é sempre fuga”
“E como posso me tornar livre?”
“Não pode. Tudo lhe ilude, lhe domina e lhe influencia. A única maneira de ser livre é não existindo. Não resista a mim e tudo ficará bem. Fugir é permitir das as chaves da sua prisão para outra pessoa, que não você mesmo”
Lágrimas de ódio, de raiva e culpa escorrem de seus olhos. Ele se vê cercado cada vez mais. Mas não quer ir com eles.
“E qual a diferença entre sua prisão e a dos outros?”
“A que você quiser, afinal, só vemos aquilo que queremos ver”
“Eu não vou com você”
“Ah, vai sim. De um jeito ou de outro, você vem comigo”

Um calafrio lhe gela a espinha. Thomas concentra toda a sua força no momento. Quando as sombras atacam, dobra sua vontade como aprendeu e escapa dos vultos, retornando correndo de onde veio, quase trazendo o coração à mão, de tão descompassado que vinha.

Todos ainda estão lá se divertindo, alimentando o prazer de estar neste lugar paradisíaco; outros realizando seu amor. Júlia apara o rapaz sem entender porque ele vinha correndo com tamanho desespero no próprio ser. Mal ela começa a perguntar o que poderia estar errado com ele num lugar tão bom como aquele que a resposta ficou marcada para sempre na visão de todos com o horror que veio a seguir.

“ESTE LUGAR É UMA DESGRAÇA”


A palavra proferida ecoa algumas vezes no ar. E então marca de forma indelével no cerne deste mundo, tornando a natureza sua natureza e propósito, por ele comandada a seguir convertendo-se em propósito o seu dito, marcada de uma forma muito mais poderosa do que ele viu ser antes.

Sua aura, antes tão bem comentada, pela jovem que muito o admirava, o viu escurecer e tornar-se um vulto sinistro, com apenas dois pontos brilhantes no lugar dos olhos, enquanto o mundo reagia à sua proclamação, reunindo pesadas nuvens de tempestade, trovejando e atraindo ventos de desastre.

A terra fende e treme, instaurando o terror nos habitantes deste outrora mundo, cujo magma ascende e os raios cortam os céus tornando clara a tragédia anunciada. A todos restava implorar pela vida e rezar que pudessem voltar vivos da experiência que um dia lhes deu tanto prazer.

Diego reage como pode, vendo estupefato como alguém que ele nunca ouviu falar ter poder para fazer o impensável. Thomas era com certeza incrível. Não sabia mais se deveria mantê-lo vivo para recrutá-lo ou matá-lo por ser perigoso demais para ser controlado.

 Quando Diego saiu de casa naquela noite, não tinha ido apenas ir ver Júlia. Tinha ouvido falar da jovem de alguém que ela considerava extraordinário e ela tinha realmente um sexto sentido para estas coisas. Ele sabia que seria alguém com bastante potencial para entrar no seu grupo seleto. Talvez até desse a honra de apresentá-lo ao chefe.

E de fato, o rapaz era tudo o que ele pensava e muito mais. Muito mais do que ele mesmo poderia esperar. Quem foi que levava a todos para o Mundo à Parte? Diego. Quem tornava seus sonhos realidade? Diego. Ainda que eles não soubessem o preço que pagavam por tudo isso, Diego regojizava em sua capacidade de erigir este local para onde os levava em algumas noites especiais e como sua habilidade modeladora o tornava quase como um deus.

Ao menos era assim que pensava. Este estranho que acabara de conhecer demonstrou uma habilidade que ele não tinha: de afetar a modelagem alheia! Isso era espantoso. Talvez ele pudesse ensinar como fazia isto. Ou talvez nem soubesse como fez, dada a demonstração crua e cruel que realizava no momento.

Ele não era mais um deus criando este mundo, mas um demônio destruindo-o. Um demiurgo! Com esta linha de pensamentos em mente, Diego se aproximou como pôde diante dos ventos de poder de Thomas que impediam a aproximação fácil de qualquer um.

Com um golpe poderoso na nuca, Diego o enfraqueceu. Thomas, completamente coberto pela capa negra, se voltou a ele e decidiu enfrentá-lo pela simples lembrança de não gostar dele, sabe-se lá por que. A verdade é que Thomas não mais estava coeso. Como na primeira vez que de decompôs, seus sentimentos voláteis de descontrolaram e seu ser se perdeu no turbilhão de sentimentos que normalmente são represados pela sua carne.

Agora, a situação era extremamente similar, com a diferença que era esta escuridão, as trevas em seu coração, a capa que continham seu ser dando forma física à ameaça que era. A luta não estava boa para nenhum dos lados. Diego era maior e mais poderoso, mas Thomas não queria se render antes de destruir tudo.

Após diversos socos, Diego sangrava bastante, resistindo como podia para manter inteiro o mundo que construiu enquanto o monstro Thomas rachava desejando aniquilar o que tentava destrui-lo. Recuando mais e mais enquanto defendia não a si próprio, mas os seus e seu ponto de vista, Diego tropeça e perde o equilíbrio. O monstro Thomas tem seu opositor vulnerável a um golpe final. Júlia não suportava ver isto. Não queria ver nenhum dos dois assim. Ela interfere na contenda, abraçando-o por trás e tocando com o âmago dela o âmago dele para que cada um lembre quem verdadeiramente é.

Ele detém o golpe final. Mas Diego não faz o mesmo, perfurando o peito de Thomas e liberando a luz aprisionada do ser dele. Derrotado, o monstro reverte ao seu ser original, enquanto a fúria dos elementos amaina. Por fim, para ter certeza do fim deste apocalipse, Diego arremessa-o no abismo que ele mesmo erigiu. Júlia grita por Thomas, enquanto Diego a detém se segui-lo.

“Diego, seu monstro, o que você fez?” - ela não consegue conter as lágrimas.
‘Eu não tive escolha. Era isso ou nossa morte.’
“Devia haver outro jeito. Por favor, Diego, diz que ele não morreu.”
‘Ele deve...’

Mas Diego não consegue terminar a sua fala um gigantesco relógio não visto começa a tocar suas badaladas de forma ensurdecedora. Não há como não ouvi-lo, esteja onde estiver.

Blém... Blém... Blém... Blém... Blém...
Blém... Blém... Blém... Blém... Blém...

A cada badalada o mundo vai estabilizando. Era o sinal de que o tempo havia acabado. A destruição e mesmo o Mundo à Parte vai se dissolvendo. As pessoas vão retornando, seguras. Quando Diego vê, Júlia e o irmão já estão indo para o quarto. Ele e os seus deveriam partir, deixando o mínimo de sinais que estiveram ali.

No sofá foi deixado o corpo inerte do Thomas. Com certeza haveria conseqüências disto e Diego não queria estar lá para enfrentá-las. E saiu logo com sua trupe.

Enquanto isto, no abismo, uma alma acabava de chegar a um lugar mais fundo do que o havia estado neste dia. Lá estava o Senhor do Submundo, o Senhor que Thomas encontrara antes, mostrando que estava certo em sua assertiva inicial. O jovem foi levado pelos asseclas de volta a cidadela murada que um dia chamou de lar.

Era exatamente como o orfanato que vivera. E que um dia incendiou. Ele ouviu um gênio lhe dizer que seu desejo fora realizado.

“Estou acordado, mas gostaria de poder voltar a dormir.”

Agora poderia dormir. Quando acordasse teria a resposta à sua pergunta.

>>> Passei muito tempo vagando até que ele veio até mim e me disse quem sou <<<
Legião Urbana.

***

3 comentários:

  1. Imagens retiradas do deviantart - praticamente todas tiradas por serem free for use.

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  2. Algumas citações não estão plenamente fieis; em alguns casos isso é proposital.

    Este conto é grande. Então, para fazer a continuação, irá demorar. Ou isso, ou posto cada fragmento até compilar tudo - e foi até algo que pensei neste aqui, publicar na forma de fragmentos e manter esta compilação.

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  3. Muito interessante. Espero ver logo a continuação e confirmar o que Thomas é.

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